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O papel do papel

Outro dia, observando minhas anotações feitas a lápis num verso de papel impresso, alguém disse, ‘você vai precisar de um caderno’. Respondi imediatamente que não os usava mais, que passava tudo pro computador e depois carregava para o Palm. Prático, digital e moderno.
Mas ficou a reflexão.
Não quero discutir aqui se o meio digital vai acabar com o papel. Quanto mais a internet entra na vida das pessoas com oferta de conteúdos especializados, segmentados e globalizados, mais vemos nas bancas jornais e revistas trilhando os mesmos caminhos. A mídia impressa percebeu que precisava mudar e ficou mais ágil, concisa e direta. Além disso, apostou na segmentação por público e essa receita ainda vai garantir a sobrevivência do papel pela próxima década.

O que quero é falar sobre a visão romântica da folha de papel em branco esperando para ser preenchida por idéias ou conceitos, palavras de consolo e amizade, ou simplesmente notas.

Quando sacamos uma caneta – un stylo - e começamos a escrever, um pouco de nós fica no papel. Cada pessoa tem um jeito de desenhar uma letra diferente dos outros. É um estilo de escrever, de segurar o lápis, de posicionar a folha. E como pensamos muito mais depressa do que a velocidade com que escrevemos, conseguimos ir encaixando as palavras, escolhendo-as uma a uma, até que componham nosso sentimento naquele instante.

Não importa que tipo de redator você seja, o importante é escrever sempre. Redigir é um ofício como outro qualquer e só se adquire prática fazendo, refazendo, errando e acertando. Portanto, se você quer aprimorar sua redação, de vez em quando, deixe o computador de lado e dê mais de você mesmo num papel alvo e casto.
Escreva uma carta. Para a mãe de um amigo que mudou para a Suíça há oito anos. Conte para ela como vai a sua vida, o que você tem feito, como se lembra do sabor das balas puxa-puxa que ela fazia com açúcar e leite de coco. Escreva para uma pessoa que convive com você. Escolha um papel ecologicamente correto – reciclável – e coloque ali as suas impressões sobre o mundo e as pessoas. Fale sobre política e futebol. Sem o compromisso de escrever direito ou acertar toda a conjugação verbal. Apenas permita-se escrever.

Eu escrevo tanto, em tantas condições que me surpreendo com minhas próprias palavras. Recentemente me pediram emprestado um livro que fala sobre a formação do universo sob uma ótica apocalíptica humanista. Um daqueles livros que você nem sabe por que tem. Quando tirei o livro da estante, comecei a folheá-lo e percebi que eu briguei com o autor o tempo todo, contestando as teorias dele, preenchendo na pequena margem as minhas respostas e até xingamentos, como se eu pudesse debater. Passei mais da metade do livro fazendo isso, até que cheguei a uma página onde eu tinha escrito o seguinte: “Finalmente descobri porque PERDI tanto tempo lendo essa coisa:“, e aí sobrescrevi uma frase interessante “Tão incômodo como o diabo numa pia de água benta”. Gostei disso. Realmente deve ser incômodo pro diabo, mas decidi parar de ler aquela ‘coisa’ por ali.
Escrever é importante e ler é imprescindível. Além do conhecimento, ampliamos nosso vocabulário e temos a oportunidade de conhecer estilos de escrita, belas composições de frases e outros gêneros que podemos aplicar em nosso dia-a-dia. Ler o que nós mesmos escrevemos. Ver como o tempo aperfeiçoa nossa técnica e como a prática molda nosso estilo. É um bom exercício.


Principalmente porque sempre estamos melhores.

Ed Vedder, vocalista da banda Pearl Jam, gosta de publicar em seus discos uma cópia de manuscrito de suas composições. Aparece a folha do papel destacada do caderno, os desenhos que fez enquanto compôs, a sua letra ora em caixa alta, ora corrida, como quem escreve rápido para não perder a idéia, cores de canetas diferentes, e toda a emoção fica registrada ali também. É fácil de sentir enquanto se ouve a melodia e acompanha a letra.
Faça o mesmo. Deixe um pouco de você numa folha de papel e deixe alguém decifrar. Parece meio tolo, uma vez que na internet temos uma audiência grande e diversificada. Mas observe a experiência da exclusividade de quem recebe a sua carta escrita a mão. E depois me conte como foi.

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